do consumo não pode ser pensada apenas no campo dos
limites da escola, mas nas nossas vidas, na medida em que
habitamos um mundo compartilhado por adultos e crianças. E
lidamos com crianças na escola de maneira diferente daquela
que fazemos em nossas casas. Porém, muitas vezes, enquanto
professores, educamos os filhos de outras famílias e os nossos
próprios. Qual a diferença e quais os valores que orientam
nossas práticas em casa e na escola? Se nossos filhos estão
matriculados na escola em que trabalhamos, como as questões
dos filhos de outras pessoas me afetam particularmente?
Se não concebermos a relação com a criança enquanto uma ética, continuaremos a
separar vida, trabalho, razão, emoção. Pensar uma ética de relação entre adultos e
crianças pressupõe procurar ser integral, evitando a separação dessas esferas. É difícil
separar a vida pessoal da vida escolar, portanto nossa reflexão levará em conta a vida,
que engloba a privada e do trabalho.
De que infância e de que criança falamos? Como as crianças são constituídas em sua
percepção de mundo através do olhar que lançamos a elas? Trata-se de uma questão
importante, porque, muitas vezes, se trabalha com a perspectiva da “infância ideal”. As
imagens da publicidade, por exemplo, passam a imagem de crianças idealizadas, que
pouco tem a ver com a realidade do nosso país. Há, ainda, algumas que projetam o
futuro profissional da criança, eliminando a infância e, certamente, influenciando nossa
prática pedagógica — não raramente, as famílias matriculam seus filhos na educação
infantil já pensando no vestibular.
Nós somos o resultado das mídias que tivemos ao nosso lado enquanto crescíamos,
éramos educados, vivíamos. As pessoas educadas em épocas totalmente distintas do
ponto de vista da tecnologia dos aparelhos eletrônicos que fazem parte de nossas vidas,
como, por exemplo, a televisão a válvula do passado e a equipada com controle remoto
(que permite trocar de canal incessantemente), não podem ser iguais. A criança atual
dispõe de canais 24 horas no ar, muito diferentemente daquela que, nos anos 60, tinha
de esperar pacientemente a televisão esquentar até acender. Estamos imersos numa
aceleração das experiências cotidianas. Se antes os objetos de uma geração eram
estranhos para a geração seguinte (por exemplo, o videocassete), agora verificamos que
aqueles se tornam obsoletos para uma mesma geração.
No que se refere ao consumo, a partir da década de 1980 a propaganda passou a
dirigir suas mensagens diretamente às crianças. Isso decorreu de uma série de temas que
entraram na pauta da sociedade brasileira e que determinam a mudança das relações
entre adultos e crianças: a recuperação do debate sobre os direitos humanos, o
movimento dos trabalhadores por melhores condições de vida e reconhecimento e a luta
das mulheres por condições mais igualitárias. Em 1979, comemorou-se o Ano
Internacional das Crianças, quando começaram a circular, em âmbito internacional, leis
de proteção da infância. Portanto, a criança passou a ocupar lugar de destaque no
cenário nacional e no mercado.
O consumo é uma prática social, econômica e cultural — uma expressão de
identidade. As crianças também sofrem pressões sociais por questões de consumo, além
de seus pais. Muito mais do que a expressão da saciação de uma necessidade, o
consumo passou a ser um ato prazeroso. A propaganda não enfatiza mais a utilidade do
produto anunciado, mas dirige-se a uma determinada imagem de consumidor. O
consumismo é considerado uma doença contemporânea, e, como se sabe, não afeta
apenas os adultos. A economia se movimenta através da produção e, consequentemente,
do consumo, porém há um ponto além do qual este se torna patológico.
Devem-se distinguir os bens materiais e os bens simbólicos. Os bens simbólicos nos
posicionam dentro de um grupo social e têm significado que vai muito além do valor de
um objeto. O valor simbólico não tem a ver com o valor de uso do produto, e sim com o
valor de troca — qual nosso reconhecimento pelo grupo a partir daquilo que possuímos.
Ora, as crianças movimentam muito dinheiro e são percebidas como consumidores
privilegiados. Uma pesquisa realizada em 2007 nos EUA apontou que foram gastos as
seguintes cifras em produtos infantis: US$ 353 milhões em revistas e figurinhas; US$
108 milhões em perfumaria; US$ 5 bilhões em fast-food; US$ 120 milhões em parques;
US$ 200 milhões em cinema; US$ 160 milhões em DVDs infantis; e US$ 60 milhões
em TV por assinatura.
As mídias mais acessadas pelas crianças no Brasil são TV, computador, rádio e
revista. Em 2007, o Ibope apontou uma queda no consumo de TV e 17% a menos de
audiência dos canais a cabo, por conta da popularização dos computadores. As crianças
brasileiras assistem diariamente, em média, de 4 horas a 4 horas e meia de televisão —
ou seja, o mesmo tempo que passam na escola. Seus programas prediletos são desenhos,
novelas e programas de auditório (o programa mais visto pelas crianças é a novela do
horário nobre, do qual são o grupo de expectadores mias fiel). Curiosamente, os
programas classificados como infantis não figuram na lista dos 10 mais assistidos pelas
crianças, o que nos faz refletir a respeito dos produtos culturais e educacionais infantis
que não levam em consideração sua opinião.
Há um paradoxo marcante na relação de adultos e crianças com o consumo,
demonstrado pela oposição entre pertencimento e exclusão. Se, por um lado, possuir
determinado bem cria uma identidade que insere alguém no grupo daqueles que também
o possuem, por outro, formas muito claras de exclusão se verificam com respeito
àqueles que não têm certo produto. Só o mundo do consumo e da publicidade não há
contradição, pois nos prometem toda a felicidade e mostram famílias perfeitas e sempre
alegres. Constrói-se a ideia de uma juventude que começa aos 4 anos de idade e jamais
termina, além de se massificar a cultura da moda com a lógica de que o produto já está
obsoleto ao sair da loja.
Só a educação ética e comprometida poderá dizer que nem tudo é possível. Acredito
que a escola precisa cumprir essa missão de questionamento a respeito daquilo que, de
fato, é necessário. Algumas práticas auxiliariam a discutir tal questão: a compra
compartilhada de materiais escolares, a carona solidária, os lanches coletivos, avaliação
não competitiva, etc. Precisamos encontrar maneiras que permeiem nosso cotidiano na
busca por experiências mais solidárias.
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